terça-feira, 3 de junho de 2008

Introdução: PROMESSAS QUEBRADAS

por Irene Khan, Secretária Geral da AI

Irene Khan, secretária-geral da Anistia Internacional, visita um projeto comunitário de capacitação de mulheres em Bangladesh.



Os líderes mundiais devem se desculpar por não terem cumprido a promessa de justiça e de igualdade que fizeram com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada há 60 anos. Nessas seis décadas, muitos governos se mostraram mais interessados em abusar do poder ou em perseguir seus próprios interesses políticos do que em respeitar os direitos de quem representam.

Isso não significa negar os progressos que foram feitos no desenvolvimento de normas, sistemas e instituições de direitos humanos, em nível internacional, regional e nacional. Em diversos lugares do mundo, muita coisa melhorou por causa dessas normas e princípios. O número de países que hoje oferecem proteção legal e constitucional para os direitos humanos é maior do que nunca. Apenas uma pequena porção de países negaria abertamente à comunidade internacional o direito de examinar sua situação de direitos humanos. Em 2007, completou-se um ano de funcionamento pleno do Conselho de Direitos Humanos da ONU, através do qual todos os Estados-membros das Nações Unidas concordaram em debater publicamente seu desempenho em questões de direitos humanos.

Apesar de todos os eventos positivos, a realidade, porém, é que a injustiça, a desigualdade e a impunidade continuam sendo alguns dos aspectos mais marcantes do mundo de hoje.

Em 1948, em uma atitude de extrema liderança, os líderes mundiais se reuniram para adotar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os Estados-membros de uma Organização das Nações Unidas que recém ensaiava os primeiros passos demonstraram ter grande visão e coragem quando depositaram sua confiança em valores globais. Eles tinham pleno conhecimento dos horrores da II Guerra Mundial e tinham consciência da realidade sombria que viria com a Guerra Fria. Sua visão não se limitava apenas ao que acontecia na Europa. 1948 foi também o ano em que a Birmânia ganhou sua independência, que Mahatma Gandhi foi assassinado e que as leis de apartheid passaram a ser introduzidas na África do Sul. Grande parte do mundo ainda se encontrava sob o jugo do colonialismo.

Os redatores da DUDH agiram com a convicção de que somente um sistema multilateral de valores globais, baseado em igualdade, justiça e no Estado de direito, poderia fazer frente aos desafios que estavam por vir. Em um verdadeiro exercício de liderança, eles resistiram às pressões de campos políticos que se opunham. Rejeitaram qualquer hierarquia entre o direito à liberdade de expressão e o direito à educação; entre o direito de não ser torturado e o direito à segurança social. Eles reconheceram que a universalidade dos direitos humanos – todas as pessoas nascem livres e iguais – e sua indivisibilidade – todos os direitos, sejam eles econômicos, sociais, civis, políticos ou culturais, devem ser realizados com o mesmo empenho – são a base de nossa segurança coletiva e de nossa humanidade comum.

Nos anos seguintes, a liderança visionária deu lugar a interesses políticos estreitos. Os direitos humanos se transformaram em um jogo excludente entre as duas "superpotências" envolvidas em uma luta ideológica e geopolítica para estabelecer sua supremacia. Enquanto um dos lados negava os direitos civis e políticos, o outro rebaixava os direitos econômicos e sociais. Ao invés de favorecer a dignidade e o bem estar das pessoas, os direitos humanos eram usados como instrumento para promover objetivos estratégicos. Os países que recém haviam conquistado sua independência e que se encontravam em meio à disputa entre as potências, ou lutaram pela democracia e pelo Estado de direito, ou abandonaram-nos de vez para adotarem diversas formas de autoritarismo.

A esperança sobre os direitos humanos aumentou com o fim da Guerra Fria, mas foi frustrada por uma explosão de conflitos étnicos e pela implosão de vários Estados, desencadeando uma série de emergências humanitárias, marcadas por abusos de direitos humanos perversos em grande escala. Enquanto isso, a corrupção, os governos medíocres e a impunidade generalizada para as violações de direitos humanos reinavam absolutos em muitas partes do mundo. Ao entrarmos no século XXI, os ataques terroristas de 11 de setembro transformaram o debate de direitos humanos, mais uma vez, em uma questão desagregadora e destrutiva entre "ocidentais" e "não-ocidentais", restringindo liberdades, alimentando suspeitas, medo, discriminação e preconceitos, tanto entre governos quanto entre populações.

As forças da globalização econômica trouxeram novas promessas, mas também novos desafios. Apesar de os líderes mundiais alegarem ter-se comprometido com a erradicação da pobreza, em sua grande maioria, ignoraram os abusos de direitos humanos que provocam e que aprofundam a pobreza. A promessa da Declaração Universal dos Direitos Humanos continuou a existir só no papel.

Hoje, olhando para trás, o que mais surpreende é a unidade de propósitos demonstrada pelos Estados-membros da ONU àquela época, quando adotaram a DUDH por absoluto consenso. Agora, frente a inúmeras e urgentes crises de direitos humanos, não há, entre os líderes mundiais, uma visão compartilhada sobre como lidar com os desafios contemporâneos de direitos humanos em um mundo que está cada vez mais ameaçado, inseguro e desigual.

O cenário político, hoje, é muito diferente do que era 60 anos atrás. Existem muito mais países hoje do que em 1948. Algumas ex-colônias estão entrando no jogo global lado a lado com seus antigos senhores coloniais. Pode-se esperar que as potências novas e as antigas se unam, como fizeram seus predecessores em 1948, para reafirmar seu compromisso com os direitos humanos? A julgar por 2007, o quadro não é nada promissor. E quanto às novas lideranças e às pressões da sociedade civil, farão alguma diferença neste ano de aniversário?


Um histórico desanimador


Na condição de país mais poderoso do globo, os Estados Unidos estabelecem os parâmetros para o comportamento dos governos em todo o mundo. Com um obscurecimento legal impressionante, o governo dos EUA prosseguiu em seus esforços para enfraquecer a proibição absoluta da tortura e de outros maus-tratos. Autoridades de alto escalão recusaram-se a denunciar a infame prática de asfixia na "prancha d'água" (waterboarding).

O presidente dos EUA autorizou que a CIA prosseguisse com as detenções e com os interrogatórios secretos, mesmo que isso consista no crime internacional de desaparecimento forçado. Centenas de prisioneiros em Guantánamo e em Bagram, além de milhares no Iraque, continuaram a ser detidos sem acusação nem julgamento. Muitos deles estão há mais de seis anos nessa condição. O governo dos EUA não assegurou que suas forças no Iraque fossem plenamente responsabilizadas por seus abusos. Uma Ordem emitida pela Autoridade Provisória da Coalizão, em junho de 2004, concedendo imunidade jurídica perante os tribunais iraquianos para as empresas militares e de segurança privadas que operam no Iraque coloca obstáculos ainda maiores a sua responsabilização. Em setembro de 2007, houve grande preocupação quando seguranças contratados pela empresa de segurança privada Blackwater mataram pelo menos 17 civis iraquianos. Essas ações não contribuíram em nada para fazer avançar a luta contra o terrorismo, mas fizeram muito para prejudicar o prestígio e a influência dos Estados Unidos no estrangeiro.

A vacuidade dos pedidos por democracia e por liberdade no exterior, feitos pelo governo dos EUA, ficou evidenciada através de seu constante apoio ao Presidente Musharraf, quando o governo paquistanês prendia milhares de advogados, de jornalistas, de defensores de direitos humanos e de ativistas políticos que clamavam por democracia, por um Estado de direito e por independência do Judiciário no Paquistão. Enquanto o Presidente Musharraf ilegalmente impunha um estado de emergência, destituía o presidente do Supremo Tribunal e lotava os tribunais superiores com juízes mais obedientes, o governo estadunidense justificava o apoio que lhe dava alegando tratar-se de um aliado "indispensável" na "guerra ao terror". A insegurança crescente nas cidades e nas regiões de fronteira do Paquistão, porém, indicam que, longe de conter a violência extremista, as políticas repressoras do Presidente Musharraf, incluindo desaparecimentos forçados e detenções arbitrárias, têm fomentado as desavenças e contribuído para estimular sentimentos antiocidentais, lançando as sementes de uma maior instabilidade na sub-região. Embora os EUA continuem a acolher o Presidente Musharraf, o povo paquistanês manifestou o quanto repudia suas políticas.

O mundo precisa que os Estados Unidos estejam verdadeiramente engajados e comprometidos com a causa dos direitos humanos, tanto em seu território quanto no exterior. Em novembro de 2008, a população dos EUA elegerá um novo presidente. Para que o país tenha autoridade moral como defensor dos direitos humanos, o próximo governo deverá fechar a prisão de Guantánamo e julgar os detentos em tribunais federais comuns ou, então, soltá-los. Deverá revogar a Lei de Comissões Militares e assegurar o respeito pelo direito internacional humanitário e pelos direitos humanos em todas as suas operações militares e de segurança. Deverá proibir as provas obtidas mediante coerção e denunciar todas as formas de tortura e de outros maus-tratos, quaisquer que sejam suas finalidades. O novo governo deverá estabelecer uma estratégia viável para a paz e a segurança internacionais. Deverá abandonar o apoio a líderes autoritários e investir em instituições democráticas, no Estado de direito e nos direitos humanos, o que possibilitará uma segurança duradoura. Deverá, ainda, estar preparado para acabar com o isolamento dos EUA no sistema internacional de direitos humanos e para engajar-se de maneira construtiva com o Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Se o governo dos Estados Unidos tem se destacado recentemente por afrontar o direito internacional, os governos da Europa têm demonstrado uma propensão à aplicação de dois pesos e duas medidas. A União Européia (UE) pretende ser "uma união de valores, unida pelo respeito ao Estado de direito, moldada por normas comuns e pelo consenso, comprometida com a tolerância, a democracia e os direitos humanos". Contudo, em 2007, surgiram novas evidências de que diversos Estados-membros da União Européia voltaram-se para o lado oposto e foram coniventes com a CIA no seqüestro, na detenção secreta e na transferência ilegal de prisioneiros para países em que foram torturados ou sofreram maus-tratos. Apesar dos repetidos apelos do Conselho da Europa, nenhum governo investigou completamente esses delitos, nem deixou claro o que aconteceu ou adotou medidas adequadas para impedir uma futura utilização do território europeu para transferências extrajudiciais e detenções secretas.

Ao contrário, alguns governos europeus procuraram enfraquecer uma decisão da Corte Européia de Direitos Humanos, de 1996, proibindo o repatriamento de suspeitos para países em que poderiam sofrer tortura. A Corte se pronunciou com relação a um dos dois casos que ainda aguardavam decisão em 2007, reafirmando a proibição absoluta da tortura e de outras formas de maus-tratos.
Enquanto muitos reclamam por causa dos excessos regulatórios da UE, ninguém se incomoda com a falta de regulação em matéria de direitos humanos no âmbito interno da União. A verdade é que a União Européia não consegue cobrar de seus Estados-membros responsabilidade por questões de direitos humanos externas ao arcabouço legal da UE. A Agência dos Direitos Fundamentais da União Européia, criada em 2007, recebeu um mandato tão limitado que não lhe permitia exigir qualquer prestação de contas. Embora a UE estabeleça parâmetros de direitos humanos elevados para os países que pretendem aderir ao bloco (e o faz com razão), uma vez que esses países são admitidos, eles podem violar as normas da UE, tendo que prestar pouca ou nenhuma satisfação à organização.

Poderão os Estados-membros da UE pedir que a China ou a Rússia respeitem os direitos humanos quando eles mesmos são cúmplices com a tortura? Poderá a UE pedir que outros países – muito mais pobres – mantenham suas fronteiras abertas quando seus próprios Estados-membros estão restringindo os direitos dos refugiados e dos requerentes de asilo? Poderá a União Européia pregar a tolerância no exterior quando fracassa em enfrentar a discriminação contra ciganos, muçulmanos e outras minorias que vivem dentro de seu próprio território?

Este ano, tanto para os EUA quanto para a UE, será um período de importantes transições políticas. O Tratado de Lisboa, assinado pelos governos da União Européia em dezembro de 2007, exige que novos compromissos institucionais sejam engendrados por seus Estados-membros. Em alguns dos Estados-membros mais importantes, eleições e outros acontecimentos políticos fizeram ou farão emergir novas lideranças políticas. Eventos como esses oferecem oportunidades para iniciativas de direitos humanos tanto no âmbito da UE quanto em nível global.

Quando os Estados Unidos e a União Européia causam danos a sua reputação em matéria de direitos humanos, sua habilidade para influenciar os outros diminui. Um dos exemplos mais visíveis da esterilidade que infundiram aos direitos humanos foi o caso de Mianmar, em 2007. A junta militar do país reprimiu com violência as manifestações pacíficas organizadas por monges, invadiu e fechou monastérios, confiscou e destruiu propriedade, espancou, prendeu e atirou nos manifestantes, hostilizou e tomou como reféns seus amigos e seus familiares.

Os EUA e a UE condenaram essas ações em termos bastante fortes e intensificaram seus embargos comerciais e de armamentos; porém, isso não teve, praticamente, qualquer efeito concreto sobre a situação de direitos humanos. Milhares de pessoas continuaram a ser detidas em Mianmar, entre as quais, ao menos 700 prisioneiros de consciência, sendo a mais proeminente entre eles a ganhadora do prêmio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi, que passou 12 dos últimos 18 anos sob prisão domiciliar.

Do mesmo modo que em Mianmar, também em Darfur os governos ocidentais praticamente não exerceram qualquer influência sobre a situação de direitos humanos. Embora a indignação e as amplas mobilizações da opinião pública internacional tenham gravado o nome de Darfur na consciência mundial, para o sofrimento das pessoas, isso não fez quase nenhuma diferença. Os assassinatos, os estupros e a violência prosseguiram implacavelmente e, se é que algo aconteceu, o conflito tornou-se ainda mais complexo e uma solução política tornou-se ainda mais remota. Apesar de uma série de resoluções do Conselho de Segurança da ONU, o posicionamento de forças híbridas da União Africana e da ONU na região ainda não havia acontecido integralmente.


Potências emergentes


Tanto com relação a Mianmar quanto a Darfur, o mundo voltou-se não para os Estados Unidos, mas para a China, como o país com a influência política e econômica necessária para fazer as coisas acontecerem – e não sem razão. A China é o maior parceiro comercial do Sudão e o segundo maior de Mianmar. A Anistia Internacional, através de suas pesquisas, mostrou que armamentos chineses estão sendo transferidos para Darfur em desafio ao embargo de armas imposto pela ONU. Há muito tempo que a China justifica seu apoio a governos abusivos, tais como os do Sudão, de Mianmar e do Zimbábue, definindo os direitos humanos como sendo um assunto interno de Estados soberanos e não como uma questão de sua política internacional de modo que convenha aos interesses políticos e comerciais chineses.

A posição da China, porém, não é imutável nem intratável. Em 2007, o país votou a favor do destacamento de uma força de manutenção da paz híbrida para Darfur, pressionou Mianmar a aceitar a visita do enviado especial da ONU, e diminuiu o apoio aberto que dava ao Presidente Mugabe, do Zimbábue. Os mesmos fatores que, no passado, motivaram a China a estabelecer relações com regimes repressores, podem muito bem ser a razão para as mudanças observadas hoje em suas políticas para esses países: a necessidade de fontes confiáveis de energia e de outros recursos naturais. A Anistia Internacional e outras organizações de direitos humanos, há muito tempo, têm argumentado que países com má reputação em matéria de direitos humanos não criam um ambiente propício para os negócios – negócios precisam de estabilidade, e é isso que os direitos humanos propiciam. É possível que também a China esteja começando a reconhecer que apoiar regimes instáveis com má reputação em direitos humanos não faz sentido para os negócios e que, se o país quiser proteger seus bens e seus cidadãos no exterior, deverá apoiar valores globais que criem estabilidade política a longo prazo.

Entretanto, mesmo com essas mudanças em sua diplomacia, a China ainda tem um longo caminho a percorrer. O país continua sendo, desde 2004, o maior fornecedor de armas para o Sudão. Em janeiro de 2007, a China votou contra uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que condenava as práticas de direitos humanos de Mianmar. Além disso, o pais ainda terá de cumprir as promessas de direitos humanos que fez antes das Olimpíadas de Pequim. Algumas reformas na aplicação da pena de morte e o relaxamento nas regras para a imprensa estrangeira, observados em 2007, foram obscurecidos pela repressão aos ativistas de direitos humanos e à imprensa dentro da China, e também pela ampliação do escopo da "reeducação pelo trabalho" (uma forma de detenção sem acusação ou julgamento), como parte de um esforço para "limpar" Pequim antes das Olimpíadas.

No período que antecedeu os Jogos Olímpicos, o espaço para melhoras na situação de direitos humanos da China foi reduzido, ao passo que os confrontos aumentaram. Assim que baixar a poeira das Olimpíadas, a comunidade internacional precisará desenvolver uma estratégia eficaz para levar o debate de direitos humanos com a China a um plano mais produtivo e mais progressivo. O governo chinês, de sua parte, deverá reconhecer que a liderança global traz consigo responsabilidades e expectativas, e que um jogador global, se quiser ser digno de crédito, não poderá ignorar os valores e princípios que formam a identidade coletiva da comunidade internacional.

E a Rússia, como se sai em termos de liderança de direitos humanos? Uma Rússia cheia de autoconfiança e afluente com os rendimentos do petróleo tem reprimido as opiniões políticas divergentes, exercido pressão sobre os jornalistas independentes e introduzido controles para refrear as ONGs. Em 2007, manifestações pacíficas foram dispersadas com o uso da força, enquanto advogados, defensores de direitos humanos e jornalistas eram ameaçados e atacados. O sistema judicial permaneceu vulnerável a pressões do Executivo. A corrupção arraigada comprometeu o Estado de direito e a confiança da população no sistema legal. Na Chechênia, a impunidade praticamente não tinha limites, fazendo com que as vítimas tivessem de recorrer à Corte Européia de Direitos Humanos, em Estrassburgo, para conseguir justiça.

Será que, em 2008, o novo presidente russo, Dimitry Medvedev, dará um tratamento diferente às questões de direitos humanos? Faria muito bem dar uma olhada ao redor do mundo para aprender a lição de que estabilidade política duradoura e prosperidade econômica só podem ser construídas em sociedade abertas em que os Estados prestem contas de seus atos.

Se os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU fizeram pouco para promover os direitos humanos e muito para enfraquecê-los, que tipo de liderança podemos esperar de potências emergentes como a África do Sul, o Brasil e a Índia?

Como uma democracia liberal de bases bem estabelecidas, com forte tradição legal em questões de direitos humanos e com um Judiciário independente, a Índia conta com o potencial para ser um bom modelo. No Conselho de Direitos Humanos da ONU, o país teve uma atuação positiva. A Índia pode ser creditada ainda por ter ajudado a aproximar os principais partidos e os insurgentes maoístas no Nepal, acabando com um prolongado conflito armado que provocou abusos de direitos humanos de enormes proporções. Contudo, em matéria de direitos humanos, a Índia ainda precisa ser mais enérgica em sua implementação doméstica e mais franca ao exercer sua liderança internacional. Em Mianmar, enquanto a junta militar investia com violência contra as manifestações pacíficas realizadas por monges e por outros manifestantes, o governo indiano continuou com suas negociações sobre extração de petróleo. Em Nandigram, Bengala Ocidental, comunidades rurais foram atacadas e tiveram seus integrantes feridos e mortos, com cumplicidade da polícia, quando protestaram contra o estabelecimento de uma zona econômica especial para a indústria.

O papel da África do Sul na NEPAD (Nova Parceria para o Desenvolvimento da África) – que enfatiza questões de boa governança – traz esperanças de que os líderes africanos assumirão a responsabilidade por resolver os problemas africanos, inclusive com relação aos direitos humanos. O governo da África do Sul, porém, tem hesitado em se pronunciar sobre os abusos de direitos humanos no Zimbábue. Os direitos humanos são aplicáveis universalmente para todos – e nenhum país sabe disso melhor do que a África do Sul. Poucos países têm uma responsabilidade moral de promover esses valores universais, onde quer que estejam sendo violados, maior que a da África do Sul.

Países como Brasil e México têm sido firmes tanto na promoção dos direitos humanos em nível internacional quanto em seu apoio à engrenagem de direitos humanos da ONU. No entanto, a menos que a distância entre suas políticas no plano internacional e seu desempenho no âmbito doméstico seja diminuída, sua credibilidade como defensores dos direitos humanos será contestada.

Direitos humanos não são valores ocidentais – na verdade, os governos ocidentais têm mostrado tanto desdém pelos direitos humanos quanto qualquer outro governo. Eles são valores universais e, como tais, suas perspectivas de sucesso estão interligadas à liderança das Nações Unidas. Embora o Conselho de Segurança da ONU tenha permanecido imobilizado em questões de direitos humanos por causa dos interesses divergentes de seus membros permanentes, em 2007 a Assembléia Geral da ONU demonstrou seu potencial de liderança ao adotar uma resolução pedindo uma moratória universal da pena de morte. É exatamente esse tipo de orientação que o mundo precisa das Nações Unidas: Estados que inspirem uns aos outros a aprimorarem seu desempenho, ao invés de se nivelarem por baixo. Isso é o melhor que a ONU pode oferecer. Terá o Conselho de Direitos Humanos da ONU esse tipo de liderança em 2008 quando adotar o sistema de Revisão Periódica Universal?

Em setembro de 2007, em uma demonstração de liderança corajosa e impressionante, frente à oposição de Estados extremamente poderosos, 143 dos Estados-membros da Assembléia Geral da ONU votaram a favor da adoção da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, encerrando duas décadas de discussões. Dois meses depois de a Austrália ter votado contra a Declaração, o governo recém eleito do primeiro-ministro Kevin Rudd apresentou um pedido formal de desculpas pelas leis e pelas políticas de sucessivos governos que "infligiram profunda aflição, sofrimento e prejuízo" à população indígena aborígine.


Construindo uma nova unidade de propósitos


Enquanto a ordem geopolítica passa por mudanças tectônicas, as antigas potências estão renegando os direitos humanos, ao passo que os novos líderes ainda não emergiram ou se mostram ambivalentes com relação a esses direitos. Neste cenário, qual é o futuro dos direitos humanos?

O caminho pela frente tem muitas pedras. Conflitos entranhados – altamente visíveis no Oriente Médio, no Iraque e no Afeganistão e esquecidos em lugares como o Sri Lanka e a Somália, para citar apenas alguns – provocam sacrifícios humanos enormes. Os líderes mundiais ou se atrapalham nas suas tentativas de encontrar saídas para situações como a do Iraque ou do Afeganistão, ou não têm a vontade política para encontrá-las, como no caso de Israel e dos Territórios Palestinos Ocupados. Este conflito tão prolongado tem sido especialmente marcado pelo fracasso de uma liderança internacional coletiva (na forma de um quarteto constituído pelos Estados Unidos, pela União Européia, pela Rússia e pela ONU) em lidar com a impunidade e com a injustiça.

Quando os mercados oscilam e os ricos usam sua posição e influência indevidas para mitigar suas perdas, os interesses dos mais pobres e dos mais vulneráveis perigam ser esquecidos. Um grande número de empresas, com o apoio tácito de governos que se recusam a investigá-las ou a regulá-las efetivamente, continua a escapar da responsabilidade por seu envolvimento em abusos e violações de direitos humanos.

Há muita retórica sobre erradicar a pobreza e pouca vontade política para agir. Pelo menos dois bilhões de integrantes de nossa comunidade humana continuam a viver na pobreza, lutando para conseguir água potável, comida e moradia. Embora as mudanças climáticas afetem todos nós, os mais pobres serão os mais prejudicados, pois perderão suas terras, seus alimentos e seus meios de vida. Julho de 2007 marca o ponto medial do cronograma estabelecido pela ONU para alcançar as Metas de Desenvolvimento do Milênio. Apesar de nada perfeitas, a realização dessas metas significaria um bom caminho andado na direção de melhorar, até 2015, a saúde, as condições de vida e a educação de grande parte das populações do mundo em desenvolvimento. O mundo, porém, não está no rumo certo para alcançar a maioria dessas metas mínimas e, infelizmente, os direitos humanos não estão sendo levados em conta nesse processo. Evidentemente, uma mudança de foco e novas iniciativas são mais do que necessárias.

E a liderança para erradicar a violência baseada em gênero, onde está? Em quase todas as regiões do mundo, mulheres e meninas sofrem com os níveis elevados de violência sexual. Na região de Darfur, destroçada pela guerra, os estupros e a impunidade ainda persistem. Nos EUA, muitas sobreviventes de estupro de comunidades indígenas carentes e marginalizadas não conseguem obter justiça nem proteção efetiva por parte das autoridades federais ou das tribais. Os líderes devem estar mais atentos a fazer com que os direitos de mulheres e meninas sejam realidade.

Todos esses são desafios globais com uma dimensão humana. Por isso, exigem uma resposta global. Os direitos humanos reconhecidos internacionalmente oferecem a melhor estrutura para essa resposta, pois representam um consenso global com relação aos limites aceitáveis e aos problemas inaceitáveis das políticas e das práticas governamentais.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é hoje um modelo tão apropriado para uma liderança iluminada quanto o era em 1948. Os governos, portanto, devem renovar seu compromisso com os direitos humanos.

Populações inquietas, indignadas e desiludidas não permanecerão silenciosas se o abismo que existe entre suas demandas por igualdade e liberdade e a resposta dos governos a essas demandas aumentar a cada dia. O descontentamento popular com a alta acentuada no preço do arroz em Bangladesh, os distúrbios causados no Egito pelo preço do pão, a violência pós-eleitoral no Quênia e as manifestações que ocorreram na China por causa de despejos e de questões ambientais não são apenas exemplos da preocupação popular com temas sociais e econômicos. São sinais da ebulição de um caldeirão de protestos dos movimentos populares, inflamado pela traição de seus governos às promessas que fizeram de justiça e de igualdade.

De um modo praticamente inimaginável em 1948, existe hoje um movimento global de cidadãos exigindo que seus líderes renovem seu compromisso com a defesa e a promoção dos direitos humanos. Advogados em ternos pretos no Paquistão, monges com trajes alaranjados em Mianmar, os 43,7 milhões de pessoas no mundo que, em 17 de outubro de 2007, exigiram uma ação contra a pobreza, são fortes sinais, emitidos nesse ano passado, de que uma cidadania global está determinada a defender os direitos humanos e a cobrar de seus líderes responsabilidade pelo que fazem.

Em um povoado do norte de Bangladesh, um grupo de mulheres senta sobre esteiras de bambu, em um local poeirento no centro da aldeia. Elas participam de um programa de formação legal. A maioria delas, mal sabe ler ou escrever. Elas ouvem com atenção o professor que, auxiliado por cartazes com esquemas e figuras, ensina sobre uma lei que proíbe o casamento de crianças e que requer da mulher uma manifestação de consentimento com o casamento. Essas mulheres acabaram de receber financiamentos por meio de um projeto de microcrédito operado por uma importante ONG de desenvolvimento rural de Bangladesh (Bangladesh Rural Advancement Committee). Uma das mulheres adquiriu uma vaca e espera conseguir uma renda extra vendendo leite. Outra planeja comprar uma máquina de costura e abrir uma pequena confecção própria. O que ela espera dessa aula? "Quero saber mais sobre os meus direitos", diz ela. "Não quero que minhas filhas sofram o que eu sofri; por isso, tenho que aprender a proteger os meus direitos e também os delas." Pode-se ver nos seus olhos um brilho de determinação que, por todo o mundo, está nos olhos de milhões de pessoas como ela.

Neste aniversário dos 60 anos da DUDH, o poder que têm as pessoas de criar esperanças e de produzir mudanças está tão vivo quanto nunca. Uma consciência de direitos humanos está envolvendo o planeta.

Os líderes mundiais se arriscam por ignorá-la.



Anistia Internacional,
em solidariedade a todos os defensores de direitos humanos do mundo
no 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos



Leia mais sobre o 'Informe 2008 - Anistia Internacional' (em português)
Leia a íntegra do capítulo sobre o Brasil

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